É certo que o mundo é pródigo em condenar ao esquecimento tudo aquilo que nele se torna ultrapassado, tudo o que cai em desuso ou simplesmente deixa de fazer sentido. Talvez pior que isso é sentir que essa mesma condenação advém do facto de essas mesmas coisas já não darem lucro, porque de lucros se constrói o futuro segundo apregoam agora, por muito que esse futuro venha a ser pintado de podridão e falta de moralidade. Tenho acompanhado nos últimos tempos, a história de Cipriano Algor, um Oleiro que vê aos poucos evaporar-se o laboro e o sonho de uma vida, fatalmente condenado face à produção e venda em série das grandes superfícies, que de súbito passam a menosprezar toda a arte, requinte e história que a Olaria traz embutida nos seus rótulos. Este homem que José Saramago nos trouxe, sente-se no fundo como eu próprio me sinto face ao mundo lá fora. Talvez um dia venha a morrer assim mesmo, sem a compreensão de como chegámos a este ponto, em que num segundo deixa de se utilizar o que durante décadas ou séculos fizemos questão de usar apaixonadamente.
Imaginemos nem que só por breves instantes o que sentirá um homem que em toda a sua vida se dedicou a trabalhar o barro nas suas mãos, aperfeiçoando as suas produções com a sensibilidade dos seus próprios dedos, ao ver que sem aviso nem contemplações, o desinteresse comercial atingiu o seu sector, que é como quem diz: isso que tudo fazes já não vale de nada, já não dá lucro, hoje em dia as máquinas trabalham muito mais rápido que tu, não te encomendaremos mais nada. Quer-me parecer que para este homem, o mundo acaba de desabar, porque neste mundo não há espaço para segundas oportunidades nem adaptações às novas realidades. Acabou-se e pronto.
Nesta minha reflexão, peguei no caso do barro, nas mãos de Cipriano Algor, porque acredito que nós mesmos, todos os dias temos o nosso próprio “barro” a trabalhar, mas tal como na história, a generalidade das pessoas escolhe o caminho mais fácil, e como o barro dá trabalho e é preciso minucia, atira-se para trás das costas e escolhem-se os atalhos futuristas. Talvez nunca me venha a vender a certos futurismos, em consciência decidi o que faz sentido na progressão da minha vida, e se progredir me leva ao abismo, então ficarei sentado simplesmente a admirar a paisagem e a alimentar-me de passados que acredito poderem ser ainda muito atuais. Não consigo mais uma vez dissociar-me de um tema que pode perfeitamente ser trazido aqui a terreiro e que talvez venha a ser a grande batalha da minha vida, por muito que vá acumulando derrotas; o amor.
Talvez todos aqueles que ainda acreditem no amor, sejam Oleiros da sua própria felicidade, e necessitem de com muita dedicação e subtileza trabalhar esse Barro não só de vez em quando mas a cada dia, não vá ele resultar numa peça frouxa e frágil, ou queimada de demasiada cozedura. E por muito que as grandes superfícies nos digam que o nosso barro já não dá lucro, haverá sempre algum recanto do mundo, se calhar não tão poucos assim, onde alguém nos quererá preservar e valorizará a nossa essência. O que as novas máquinas produzem, as novas mentalidades, acabarão no lixo, a cada nova primeira fissura.
Eu, todos os dias faço questão de me sentar na minha Olaria, alimentar-me das minhas convicções, trabalhar-te, dar-te novas formas e novas cores, e fazer com que eu seja sempre uma peça importante na tua vida. Com os dedos no barro moldo uma palavra para ti: Amo-te.